Em 1904, quando a FEB realizou no Rio de Janeiro, então
capital da República, o evento para comemorar os 100 anos do nascimento de
Allan Kardec, a defesa da obra Os quatro evangelhos dentro daquela
instituição já estava estabelecida e foi este o motivo para que a instituição
tentasse, com êxito parcial, introduzir a aceitação de tal obra nas conclusões
do evento. O objetivo, então, era colocar a doutrina de Roustaing como a
indicada para os estudos “relativos à fé” no que diz respeito ao espiritismo,
considerando-a como superior aos Evangelhos segundo o espiritismo.
Diz-se que o êxito foi parcial porque a reação contrária à
obra de Roustaing impediu a aceitação simples da proposta, determinando-se que
ficaria a critério dos espíritas utilizar ou não Os quatro evangelhos,
permanecendo, pois, com o estudo de O Evangelho segundo o espiritismo.
Reconheça-se, mesmo que o êxito tenha sido parcial, foi uma vitória para os
líderes da FEB de então e um desastre de grandes proporções para a doutrina
espírita.
O fato, contudo, é que o grupo de espíritas que no Rio de
Janeiro tomou a decisão de estudar e defender Os quatro evangelhos desde
a década de 1880, de início pequeno, havia já logrado implantar tal obra na FEB
quando no final do século XIX alcançou ali o poder. O objetivo do grupo era de
espalhar o pensamento roustainguista para todo o Brasil e não fosse a reação
firme de muitos espíritas esclarecidos teria alcançado tal desiderato.
Como mostram agora os estudos de Paulo Henrique Figueiredo
com seu acesso ao acervo de Canuto de Abreu, ampliando sobremaneira a visão da
situação do espiritismo ao final do século XIX e primeira metade do século XX,
a FEB não era, inicialmente, constituída por defensores destas teses combatidas
por Kardec já ao seu tempo, mas torna-se a porta-voz delas após a chegada ao
poder daquele pequeno grupo.
A mudança estatutária que proporcionou a instalação de
Roustaing no documento maior da FEB ocorreu em 1917 e desde então tornou-se
oficial. Esta digressão se mostra necessária aqui para deixar explícito que a
retirada da citação roustainguista dos Estatutos ocorre 102 anos após a sua
fixação ali, tempo este que aumenta de mais de duas décadas quando se vê a
penetração de Roustaing ainda antes do começo do século XX. Temos, assim, no
mínimo 120 anos de presença das teses roustainguistas no movimento espírita
brasileiro.
Um fato curioso ocorrido sábado, dia 10 de agosto, foi que a
obra de Paulo Henrique Figueiredo – Autonomia, a história jamais contada
do espiritismo – ao mesmo tempo que era lançada em São Paulo ocorria na
FEB, em Brasília, a assembleia que discutia e ao fim logrou aprovar a retirada
dos Estatutos da menção aos Quatro evangelhos e seu autor. E fica
ainda mais interessante observar que esse livro apresenta, documentadamente,
estudos e conclusões que põem por terra, em definitivo, qualquer argumento em
defesa de Roustaing e sua doutrina. Atente-se para o termo – Autonomia –
apresentado no livro, pois ele é a chave para o entendimento da diferença entre
as teses defendidas por Roustaing e a obra espírita assinada por Allan Kardec.
Durante a palestra do autor, Paulo Henrique Figueiredo, no
Centro Espírita Nosso Lar, em São Paulo, quando foi anunciada a decisão sobre
Roustaing tomada em Brasília, a plateia não se conteve e aplaudiu efusivamente
a supressão roustainguista dos Estatutos da FEB. Um sentimento contido por mais
de século explodiu, num ambiente de profundas emoções, como a dizer que
Roustaing nunca deveria existir no seio do espiritismo. Mas existiu e existe, e
desde que aí está faz parte de uma história que não é simples e não se extingue
apenas com a borracha que apaga palavras, mas não elimina as consequências dos
fatos graves que tais palavras expressaram num tempo tão extenso quanto
destrutivo.
Para entender a importância dos fatos e sua possível
extensão, será preciso responder a questões amplas que se acham presentes,
cultural e socialmente, no espiritismo brasileiro, a começar por uma necessária
compreensão de que a doutrina roustainguista, defensora do pensamento
heterônimo oposto ao pensamento autônomo expresso em Kardec, carreou para o
meio espírita não simplesmente dissensões entre homens, mas profundas marcas
cuja supressão não se dará, se o der, num espaço curto de tempo. Essas marcas se
expressam por uma cultura que contaminou de maneira inequívoca a proposta dos
Espíritos interpretada por Kardec, desenvolvendo um caldo de contradições que
não se escoará senão com mudanças que demandam tempo, vontade e coragem.
A primeira pergunta está respondida com a eliminação de
Roustaing dos Estatutos da FEB. Mas esta mudança é a coisa mais simples e menos
importante de quantas são necessárias, embora tenha demorado mais de século
para ocorrer. A da mudança cultural necessária à produção de efeitos duradouros
será respondida apenas com o tempo. Entre elas, surgem outras questões tão
graves quanto: a mudança estatutária é feita a partir do reconhecimento por
parte da FEB do erro doutrinário em que incidiram? Ou simplesmente para atender
ao pedido de troca de uma camisa suja por uma limpa, sem, contudo, tratar do
corpo doutrinário adoecido? Se, porventura, a FEB estiver consciente do erro
fará conhecer o movimento todo de modo direto e transparente dessa nova
consciência, propondo mudanças amplas e necessárias à correção dos rumos? Se,
entretanto, a FEB está agindo protocolarmente e politicamente, para sustentar
por mais tempo o poder em suas mãos, sem nenhuma pretensão de extirpar o nódulo
canceroso, tudo continuará como antes e a contradição entre a autonomia e a
heteronomia prosseguirá alimentando a mentira na sua luta contra a verdade.
As consequências da adoção das teses anti-doutrinárias de
Roustaing que desembocam na dominação são mais evidentes e desastrosas, de
forma coletiva, do que se imagina. Contra a doutrina que destaca a Autonomia
uma outra contrária se fez prevalecer, direcionando indivíduos e centros
espíritas à subserviência e modulando de maneira inequívoca a sustentação da
religiosidade amesquinhada, retrógrada, dependente, que hoje se manifesta por
todos os lados, tornando ilhas isoladas as manifestações amparadas apenas e tão
somente na proposta de Allan Kardec.
A heteronomia prevalecente mantém a direção de um
espiritismo como religião instituída, contra tudo e contra todos os intérpretes
dos significados colocados por Kardec, cuja compreensão do que representam as
religiões tornou claras as oposições. A religião instituída é causa de
dominação, enquanto o espiritismo é uma proposta de autonomia como base de
evolução ou progresso. Aliada dos heterônomos, a FEB construiu todo um
arcabouço ao longo dos mais de 100 anos de história, arcabouço sobre o qual se
erigem ideias que vão de encontro às petições de autonomia amparadas nas Leis
Naturais.
A instituição proeminente do espiritismo brasileiro, que
tomou sobre si a condução dos rumos do movimento, trabalhou muito mais para
manter o poder do que para colocar o espiritismo na rota das grandes ideias.
Cuidou desde cedo de fazer prevalecer suas propostas coibindo e desestimulando
ações progressistas. Colocou-se contra os eventos que poderiam causar-lhe
desconforto, mesmo sabendo que eles eram necessários ao progresso do
espiritismo. Condenou congressos até o momento em que os condicionou aos seus interesses,
contribuindo para o estado deles nos tempos atuais, em que são eventos
festivos, coloridos pelo consumo de bens e mitos.
O que se espera da FEB, quando decide alterar os seus
Estatutos é a coragem de romper com o passado, assumindo os erros. Igual
comportamento se espera daquelas instituições que, obedecendo ao comando da
FEB, ajudaram a descaracterizar a doutrina da autonomia e instituir o seu
contrário. Mas isso só o tempo dirá.
Fonte:
https://www.expedienteonline.com.br/a-festa-o-embate-e-a-razao/