terça-feira, 5 de outubro de 2021

Como fica a doutrina espírita após a retirada, em 10 de agosto de 2019, do artigo sobre as obras de J.-B. Roustaing, dos Estatutos da Federação Espírita Brasileira?

Em 1904, quando a FEB realizou no Rio de Janeiro, então capital da República, o evento para comemorar os 100 anos do nascimento de Allan Kardec, a defesa da obra Os quatro evangelhos dentro daquela instituição já estava estabelecida e foi este o motivo para que a instituição tentasse, com êxito parcial, introduzir a aceitação de tal obra nas conclusões do evento. O objetivo, então, era colocar a doutrina de Roustaing como a indicada para os estudos “relativos à fé” no que diz respeito ao espiritismo, considerando-a como superior aos Evangelhos segundo o espiritismo.

Diz-se que o êxito foi parcial porque a reação contrária à obra de Roustaing impediu a aceitação simples da proposta, determinando-se que ficaria a critério dos espíritas utilizar ou não Os quatro evangelhos, permanecendo, pois, com o estudo de O Evangelho segundo o espiritismo. Reconheça-se, mesmo que o êxito tenha sido parcial, foi uma vitória para os líderes da FEB de então e um desastre de grandes proporções para a doutrina espírita.

O fato, contudo, é que o grupo de espíritas que no Rio de Janeiro tomou a decisão de estudar e defender Os quatro evangelhos desde a década de 1880, de início pequeno, havia já logrado implantar tal obra na FEB quando no final do século XIX alcançou ali o poder. O objetivo do grupo era de espalhar o pensamento roustainguista para todo o Brasil e não fosse a reação firme de muitos espíritas esclarecidos teria alcançado tal desiderato.

Como mostram agora os estudos de Paulo Henrique Figueiredo com seu acesso ao acervo de Canuto de Abreu, ampliando sobremaneira a visão da situação do espiritismo ao final do século XIX e primeira metade do século XX, a FEB não era, inicialmente, constituída por defensores destas teses combatidas por Kardec já ao seu tempo, mas torna-se a porta-voz delas após a chegada ao poder daquele pequeno grupo.

A mudança estatutária que proporcionou a instalação de Roustaing no documento maior da FEB ocorreu em 1917 e desde então tornou-se oficial. Esta digressão se mostra necessária aqui para deixar explícito que a retirada da citação roustainguista dos Estatutos ocorre 102 anos após a sua fixação ali, tempo este que aumenta de mais de duas décadas quando se vê a penetração de Roustaing ainda antes do começo do século XX. Temos, assim, no mínimo 120 anos de presença das teses roustainguistas no movimento espírita brasileiro.

Um fato curioso ocorrido sábado, dia 10 de agosto, foi que a obra de Paulo Henrique Figueiredo – Autonomia, a história jamais contada do espiritismo – ao mesmo tempo que era lançada em São Paulo ocorria na FEB, em Brasília, a assembleia que discutia e ao fim logrou aprovar a retirada dos Estatutos da menção aos Quatro evangelhos e seu autor. E fica ainda mais interessante observar que esse livro apresenta, documentadamente, estudos e conclusões que põem por terra, em definitivo, qualquer argumento em defesa de Roustaing e sua doutrina. Atente-se para o termo – Autonomia – apresentado no livro, pois ele é a chave para o entendimento da diferença entre as teses defendidas por Roustaing e a obra espírita assinada por Allan Kardec.

Durante a palestra do autor, Paulo Henrique Figueiredo, no Centro Espírita Nosso Lar, em São Paulo, quando foi anunciada a decisão sobre Roustaing tomada em Brasília, a plateia não se conteve e aplaudiu efusivamente a supressão roustainguista dos Estatutos da FEB. Um sentimento contido por mais de século explodiu, num ambiente de profundas emoções, como a dizer que Roustaing nunca deveria existir no seio do espiritismo. Mas existiu e existe, e desde que aí está faz parte de uma história que não é simples e não se extingue apenas com a borracha que apaga palavras, mas não elimina as consequências dos fatos graves que tais palavras expressaram num tempo tão extenso quanto destrutivo.

Para entender a importância dos fatos e sua possível extensão, será preciso responder a questões amplas que se acham presentes, cultural e socialmente, no espiritismo brasileiro, a começar por uma necessária compreensão de que a doutrina roustainguista, defensora do pensamento heterônimo oposto ao pensamento autônomo expresso em Kardec, carreou para o meio espírita não simplesmente dissensões entre homens, mas profundas marcas cuja supressão não se dará, se o der, num espaço curto de tempo. Essas marcas se expressam por uma cultura que contaminou de maneira inequívoca a proposta dos Espíritos interpretada por Kardec, desenvolvendo um caldo de contradições que não se escoará senão com mudanças que demandam tempo, vontade e coragem.

A primeira pergunta está respondida com a eliminação de Roustaing dos Estatutos da FEB. Mas esta mudança é a coisa mais simples e menos importante de quantas são necessárias, embora tenha demorado mais de século para ocorrer. A da mudança cultural necessária à produção de efeitos duradouros será respondida apenas com o tempo. Entre elas, surgem outras questões tão graves quanto: a mudança estatutária é feita a partir do reconhecimento por parte da FEB do erro doutrinário em que incidiram? Ou simplesmente para atender ao pedido de troca de uma camisa suja por uma limpa, sem, contudo, tratar do corpo doutrinário adoecido? Se, porventura, a FEB estiver consciente do erro fará conhecer o movimento todo de modo direto e transparente dessa nova consciência, propondo mudanças amplas e necessárias à correção dos rumos? Se, entretanto, a FEB está agindo protocolarmente e politicamente, para sustentar por mais tempo o poder em suas mãos, sem nenhuma pretensão de extirpar o nódulo canceroso, tudo continuará como antes e a contradição entre a autonomia e a heteronomia prosseguirá alimentando a mentira na sua luta contra a verdade.

As consequências da adoção das teses anti-doutrinárias de Roustaing que desembocam na dominação são mais evidentes e desastrosas, de forma coletiva, do que se imagina. Contra a doutrina que destaca a Autonomia uma outra contrária se fez prevalecer, direcionando indivíduos e centros espíritas à subserviência e modulando de maneira inequívoca a sustentação da religiosidade amesquinhada, retrógrada, dependente, que hoje se manifesta por todos os lados, tornando ilhas isoladas as manifestações amparadas apenas e tão somente na proposta de Allan Kardec.

A heteronomia prevalecente mantém a direção de um espiritismo como religião instituída, contra tudo e contra todos os intérpretes dos significados colocados por Kardec, cuja compreensão do que representam as religiões tornou claras as oposições. A religião instituída é causa de dominação, enquanto o espiritismo é uma proposta de autonomia como base de evolução ou progresso. Aliada dos heterônomos, a FEB construiu todo um arcabouço ao longo dos mais de 100 anos de história, arcabouço sobre o qual se erigem ideias que vão de encontro às petições de autonomia amparadas nas Leis Naturais.

A instituição proeminente do espiritismo brasileiro, que tomou sobre si a condução dos rumos do movimento, trabalhou muito mais para manter o poder do que para colocar o espiritismo na rota das grandes ideias. Cuidou desde cedo de fazer prevalecer suas propostas coibindo e desestimulando ações progressistas. Colocou-se contra os eventos que poderiam causar-lhe desconforto, mesmo sabendo que eles eram necessários ao progresso do espiritismo. Condenou congressos até o momento em que os condicionou aos seus interesses, contribuindo para o estado deles nos tempos atuais, em que são eventos festivos, coloridos pelo consumo de bens e mitos.

O que se espera da FEB, quando decide alterar os seus Estatutos é a coragem de romper com o passado, assumindo os erros. Igual comportamento se espera daquelas instituições que, obedecendo ao comando da FEB, ajudaram a descaracterizar a doutrina da autonomia e instituir o seu contrário. Mas isso só o tempo dirá.

Fonte: https://www.expedienteonline.com.br/a-festa-o-embate-e-a-razao/

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário